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Não dissemos muita coisa enquanto chegávamos no lugar. Não dissemos muita coisa enquanto barricávamos o portão. Não dissemos muita coisa enquanto preparávamos o lanche e nem dissemos muita coisa enquanto nos sentávamos para dar de comer para a Marina. Não falamos muito, em geral, e o silêncio entre nós só contribuia para me deixar mais estressado. Isso só foi quebrado quando colocamos ela para dormir. O lugar era uma casa grande, com muros altos o suficiente para barrar os zumbis, mas baixos o suficiente para escalar. Usamos o tapete de entrada de uma das outras casas para passar pelo arame farpado, jogando-o por cima dele. A porta tinha sido deixada aberta. O maior perigo era a grande porta da garagem, um portão automático metálico, pintado de verde, porém não parecia resistente o suficiente para conter dezenas de zumbis famintos. Assim, barricamos o portão. Mas, enfim, o que eu queria dizer é que era uma casa grande, o que deu direito a um quarto só para Marina. Nós dormiríamos no quarto do casal. Deitamos Marina na cama, e ela, agitada, não conseguia dormir. Tentamos acalmá-la de várias maneiras, até que ela nos disse:
-Quero uma história.
"História?" Eu pensei "Temos que dormir logo, para estarmos descansados amanhã."
-Olha, Marina, eu não sei... Eu não conheço nenhuma história.
A Vany me interrompeu, dizendo:
-Então deixa que eu conto.
Eu engoli em seco e disse, tentando aliviar a tensão:
-Vou fazer a vigia.
Levantei e fui em direção à porta. Parei quando ouvi a Vany dizer:
-Depois eu falo com você.
Eu saí do quarto, sem poder deixar de notar o quanto a Vany parecia minha mãe quando falava assim. Preocupado, fui para o segundo andar da casa, onde um par de binóculos me aguardava para a vigia. Enquanto acompanhava o movimento débil de ocasionais zumbis sem muito interesse, comecei a me preocupar mais e mais com o jeito que a Vany falou que precisava falar comigo. "Depois eu falo com você." Boa coisa não podia ser.
Pouco tempo depois, ouvi uma batida na porta que levava às escadas. A porta se abriu e a Vany me chamou enquanto eu tirava o binóculo do pescoço. No quarto, que ficava longe do quarto da criança (do outro lado do corredor), ela disse:
-O que está acontecendo com você?
Eu, meio que por reflexo, disse:
-Como assim?
Ela respondeu:
-Esse não é o Hugo que eu conhecia. Você mudou. O Hugo por quem me apaixonei teria feito qualquer coisa para alegrar ela. Cadê a sua compaixão? Ela é uma criança, pelo amor de Deus! Você não pode agir assim com ela! O que foi que aconteceu?
Eu, irritadíssimo, respondi:
-O que aconteceu? Essa porra toda aconteceu! Os zumbis aconteceram! Essas frescuras de vocês têm que parar, isso sim! Histórinha pra dormir, no meio de uma invasão de zumbis?! E você, chorando toda a vez que vê um cadáver?! Porra, isso é perda de tempo. Eu tô pensando numa maneira de sair daqui, de nos salvar, e você vem me falar sobre delicadeza?! No meio de uma invasão de zumbis?!
-Uma coisa não exclui a outra!- Ela respondeu, chorando.- Eu não acredito que tô ouvindo isso! Eu não mudei! EU não mudei! Por que você tem que mudar?!
-Eu me adaptei à situação. Você devia começar a aceitar que as coisas não são mais como antes.- Esbravejei.
A Vany me olhou com os olhos vermelhos, tremendo. Ela disse:
-Como você pode ser tão frio? Como você pode ser assim?! Como você se aguenta assim?! Eu não tô mais falando com o Hugo. Eu não quero mais você. Não quero mais olhar pra você, não quero mais falar com você, não quero mais nada com você. Você conseguiu estragar a única coisa boa que tínhamos por aqui, Hugo. Parabéns.
Peguei meu travesseiro e fui para o sofá da casa. A raiva tinha passado, de repente. Me senti culpado. Será que eu tinha sido duro demais? Será que eu estava errado? Não sei. Eu sei que queria muito, mais do que tudo, sobreviver a tudo isso. Durante uma invasão de zumbis, não se pode ter o luxo de amar. É preciso estar focado na sobrevivência, sempre. É o mais importante, não importa o preço. Agora, enquanto escrevo, percebo o quanto estava errado.