terça-feira, 7 de setembro de 2010

Capítulo 33- Desilusão

Eu abri a porta dos fundos do mercado meio inseguro, a garota no colo, tentando ver alguma coisa lá dentro. As luzes estavam apagadas, sombras se estendiam pelo interior do aposento dificultando a minha visão. Não tinha desculpas para a Vany sobre a garota. Nem sobre perder minha arma. Eu entrei, cauteloso, fechando a porta atrás de mim. Demorara bastante tempo para achar a porta dos fundos que a Vany tinha aberto. Agora eu tinha que achar a Vany.
Atravessei o quartinho com cuidado. Abri a porta, que levava a um corredor cheio de portas escancaradas. Fechei a porta novamente. Não dava pra entrar num corredor escuro, carregando uma menininha de 4 anos no colo, desarmado, sozinho, no meio de uma invasão de zumbis. Eu coloquei a garota no chão e deixei meus olhos se acostumarem à escuridão, enquanto explicava para ela que havia uma amiga minha ali dentro esperando por mim. Quando finalmente comecei a enxergar no escuro, vasculhei o quarto com um olhar, rapidamente. Então, de repente, a porta abriu, fazendo com que eu pulasse de susto, desesperado por encontrar uma arma. Porém, meu susto foi substituído por alívio quando vi um rosto bonito com lindos olhos verdes ao invés de sangue e carne podre. A Vany pulou em mim e eu abracei-a com vontade, feliz de poder sentir sua presença de novo, de sentir seu calor característico mais uma vez ao meu lado. Nos beijamos longamente e, por algum motivo, eu lacrimejei um pouco. Quando finalmente acabou o beijo, abracei-a como se quisesse guardá-la dentro de mim. Ela ficou meio confusa, mas não rejeitou o abraço. Então nos afastamos e eu comecei a problemática. Expliquei pra ela o que tinha acontecido. Falei que não podíamos abandonar a garota sozinha. Apresentei-as e descobri que o nome da garota era Marina. A Vany acatou à decisão rapidamente, mais do que eu imaginava. Logo estávamos os três andando pelo mercado despreocupadamente, já que a Vany nos avisou que não tinha ninguém por ali.
O lugar estava uma bagunça. Com certeza não éramos os primeiros a visitar o mercado, e provavelmente não seríamos os últimos. Muitas prateleiras haviam sido reviradas, e a maioria das facas e afins havia sido levada. Mas algumas outras utilidades foram esquecidas. Começamos a catar o que a gente achava que tava bom. A menina, alegre, ia pedindo coisas e surpreendia-se cada vez que pegávamos o que ela queria: não era assim que as coisas funcionavam antes. Podia-se ver o brilho naqueles olhinhos azulados enquanto nós estendíamos a mão para pegar uma caixa de suco ou um pacote de bolachas. Eu, cauteloso, comecei:
-Olha Marina, a gente tá pegando essas coisas, mãs não temos como saber se elas ainda tão boas. Se elas tiverem estragadas, pode ser que...
Eu parei de falar quando percebi que as duas tinham parado. A seção de brinquedos se estendia à nossa frente, revirada. Nem um único brinquedo havia sido levado de lá, e, no entanto, todos estavam jogados no chão, ou quebrados. Eu percebi que a garota estava esperando encontrar o lugar intacto. Eu vi os olhinhos dela se encherem de água enquanto as suas expectativas foram quebradas pela dura realidade. Ela estava com fome, cansada, machucada, mas era uma criança. E era isso que me revoltava. Não pelo fato de ser inocente e indefesa. Mas porque a porra da invasão ia tirar a infância dela. Mesmo que ela sobrevivesse a isso tudo, ainda ia ter que fazer terapia lá fora, ainda ia ter traumas pro resto da vida. Não sei se ia se encaixar de novo. E eram os mesmos medos que eu tinha pra mim mesmo. Será que as coisas iam ser simples quando tudo acabasse? Será que eu ia conseguir me acostumar à vida normal de novo? Será que eu ia conseguir fazer novos amigos? Como seria a minha relação com as pessoas que não passaram por tudo isso? E isso tudo considerando que eu tinha idade o suficiente pra entender tudo o que estava acontecendo. Agora, imagine se eu tivesse quatro anos durante a invasão. Ia ser muito pior. Merda. Malditos zumbis. Eu tinha me acostumado com eles, a raiva inicial tinha passado. Eu tinha me deixado acomodar. Isso não podia acontecer de novo.
Marina caminhou pelos brinquedos e vasculhou desesperadamente, mas não havia nada de funcional por ali. Então, com uma cara de tristeza, ela olhou para nós e eu previ o que ia acontecer. A cara dela começou a se contorcer e logo ela estava chorando, alto. Eu e a Vany tivemos a mesma reação ao mesmo tempo, correndo de encontro a ela e envolvendo-a num abraço a três. Não dissemos nada, deixamos que ela chorasse, mas também fizemos ela sentir nossa presença.
Foi só bastante tempo depois; andando de volta para a casa do Ricardo, cheios de roupas e comida, além de um martelo de amaciar carne e um martelo comum; que ela voltou a se animar, provavelmente empolgada com a expectativa da refeição. Infelizmente, nós não podíamos deixar ela ficar falando, por sempre tentarmos evitar zumbis. Por isso, tivemos que dar uns cortes legais nela, mas isso não a afetou. Ela ficou quieta, mas não ficou menos animada. A gente só se desanimou quando chegou na casa de Ricardo e descobrimos a porta aberta e a casa, vazia. Ou melhor, vazia não. No corredor principal, o corpo de Ricardo jazia, um tiro na garganta e uma poça de sangue ao redor de sua cabeça.