domingo, 13 de dezembro de 2009

Capítulo 4- Armadilha

Algumas vezes a vida não é como nos filmes. Na maioria das vezes, na verdade.
Por isso, após essa minha exclusão ao resto do mundo, quando eu voltei para a sala, eu não encontrei a Vany segurando a avó, que falava para ela alguma coisa reconfortante enquanto morria. Quando eu cheguei lá, ela já estava morta. Eu não sei nem se deu tempo pra Vany ver a avó viva. Ivan a consolava. Pedro estava encostado na parede, visivelmente perturbado. Eu sei que ele preferia ficar sozinho, quando se chateava, portanto eu fui falar com a Vany.
-Como você tá, Vâ?

Ela não respondeu. Ivan olhou para mim. Eu comecei de novo.
-Escute, eu sei que não é uma boa hora. Mas nós temos que voltar pro meu apartamento. Eles logo vão chamar a gente e...

Vany levantou e foi embora. Eu olhei para Ivan com uma expressão de "Será que eu falei coisa errada?" e depois levantei. Pedro já estava saindo também. Eu e Ivan deixamos o quarto maldito. Eu estranhei a Vany não querer ficar com o corpo da avó, mas não disse nada. Pedro tentava ouvir o que os militares estavam falando. Ele disse que eles estavam um apartamento abaixo do meu e que era melhor a gente se apressar. Continuamos a descida. Vany parecia mais calma do que eu esperava. Chegamos ao meu andar e entramos no meu apartamento. Eu parei de me preocupar com a Vany e voltei a me preocupar com os zumbis. Eu não sabia ainda o que tinha acontecido, que doença era aquela, mas agora eu sabia porque os militares haviam trazido armas. Mas devia haver uma cura. Eles disseram que os infectados seriam encaminhados para tratamento. Quem sabe houvesse uma cura. É engraçado como, nos piores momentos, a gente se agarra às mais bobas esperanças. Cura, pfffff. Lembrando agora, parecia bem infantil eu esperar por uma cura. Então, pelo alto falante, o militar disse:
-Andar número 13!

Nós nos entreolhamos. Levantamos e fomos para o elevador. A gente esperou o elevador subir e entramos nele. Todo esse tempo, Ivan tinha gastado pensando. Graças a Deus que ele ficou pensando. Foi de repente que ele disse:
-Por que os militares não têm médicos?
-O quê?- Pedro perguntou.
-Cadê os médicos? Os militares disseram que iam dar assistência pra gente, caso estivéssemos infectados, mas não tem médicos lá embaixo.

Finalmente ele tinha descoberto o que estava me incomodando nos militares. Eu tinha descoberto outra coisa pouco tempo atrás, mas antes não fazia sentido sozinha. Agora fazia sentido. O raciocínio foi rápido, quando você pensa milhares de coisas em um segundo. Com força, apertei o botão de parada de emergência e disse:
-Uma pergunta ainda mais importante...- Eu fiz uma pausa, verificando mentalmente se eu tinha REALMENTE visto o que eu achava que tinha visto. Confirmei a suspeita e continuei- Por que as armas deles têm silenciadores?

Ninguém pareceu entender. Eu falei:
-Cara, pensa! Se eles sabiam que tinha o perigo de zumbis, era tudo bem eles trazerem armas, mas o que os silenciadores mudam, se eles iam ficar lá embaixo? Pra não deixar quem estivesse no prédio ouvir tiros e entrar em pânico? Também. Mas principalmente, pra não deixar quem estiver lá embaixo ouvir.

Um momento de breve silêncio tomou o elevador. Todos pareciam confusos. Vany falou pela primeira vez desde que a avó dela morreu:
-Como assim Hugo?

Eu podia imaginar eles como aluninhos, ansiosos para que o professor lhes dissesse a coisa que ia mudar a vida deles, que lhes iluminasse com seu conhecimento. Eu sorri, mas não havia nada de engraçado no que eu ia dizer.
-Por que eles levam as pessoas para o outro lado do prédio? O que eles ganham com isso? A ilusão de que elas estão sendo levadas para as ambulâncias. Mas as ambulâncias não deviam estar aqui na frente? Não seria muito mais seguro estarem aqui junto com os militares? Não, não existem ambulâncias. Se a pessoa é infectada, eles a levam lá para trás e a executam. A sangue frio. sem ela nem saber o que está acontecendo.

Eles começaram a fazer o racicínio mentalmente. O peso das minhas palavras foi atingindo-os e eles foram ficando revoltados. Vany socou a parede do elevador e gritou:
-Porcos malditos!

-É a desculpa perfeita- Eu disse- Um vírus desconhecido. Quem é que vai suspeitar quando eles disserem que 'eles tentaram de tudo, mas ainda não conseguiram uma cura e, infelizmente, fulano morreu'?

Ivan disse:
-Temos que fazer alguma coisa

Eu comecei a raciocinar. Já tinha pelo menos um zumbi no prédio. Quanto tempo demorava para a transformação? Eu não sabia. Eles já deviam estar suspeitando da nossa demora e deviam estar invadindo o apartamento em pouco tempo, se não descobrissem que o elevador tinha parado. Tínhamos que bolar um plano de fuga. Uma maneira de escapar dos militares. Nem fudendo que a gente ia se unir com eles. Confiar neles. Eu apertei o botão de parada de emergência novamente, e o elevador voltou a andar. Não sabia o que fazer, mas ficar parado lá não dava. As portas se abriram e logo dois soldados parrudos nos puxaram para o lado de fora. Nós começamos a andar em direção à rua e logo um soldado num daqueles trajes de contenção começou a scannear a gente com o lazer, enquanto dizia um texto que provavelmente repitiu pra cada uma das famílias antes de nós.
-O vírus é desconhecido e letal. temos que fazer um tratamento rápido se quisermos ter chance de recuperação, porém a cura ainda não foi descoberta. Todos precisam ser verificados, porque, mesmo aqueles que não demonstram sintomas podem ser portadores do vírus. Também não pensem que são imunes, os portadores têm uma mutação do vírus feita para ser silenciosa, que, no caso, não é letal. Mas se eles pegarem o vírus outra vez, pode ser a versão ativa e aí eles vão demonstrar sintomas como todo mundo.

Enquanto ele dizia isso, ia escaneando a gente. Então ele esperou um momento e o aparelhinho bipou três vezes. Como eu disse, a vida quase nunca é como os filmes. A gente quase nunca consegue o que quer. É muito raro a gente dizer uma frase de impacto, ou inventar uma dança numa festa que todo mundo dance igual. Quer dizer, quantas vezes você já disse uma coisa pensando que era engraçada ou maneira e depois ninguém gostou? Quantas vezes você já tropeçou enquanto caminha? Quantas vezes você já fez um discurso improvisado e ganhou o respeito e afeto de todo mundo com esse discurso? Entendeu?

Ainda assim, de vez enquanto acontece. Coisas como a coincidência enorme que estava para acontecer. A triste, infeliz, coincidência. O cara na roupa de contenção apontou para nós quatro e disse:
-Os quatro estão contaminados. Podem chamar os próximos.

E a gente nem soube se tínhamos o vírus ativo ou éramos só portadores. A gente só soube que, no momento seguinte, mãos fortes pegaram nossas costas e nos empurraram, enquanto, sob mira de arma, nós fomos levados para a ruela que fica atrás do meu prédio.