-Por que você gritou?!
Eu olhei pra Vany e a Vany olhou pra mim. E aí a gente não segurou, começamos a rir, o mais baixo possível. Rimos muito e logo o Pedro e o Ivan começaram a rir junto sem nem saber o motivo. A gente riu baixo, e nos fez bem, porque fazia tempo que a gente não ria, mas isso atraiu a atenção de alguma coisa. A gente ouviu um carro, provavelmente grande, militar, dobrando a esquina e aí a gente se grudou atrás do lixão. Todas as risadas pararam abruptamente. A gente viu os faróis do carro passando e ouviu alguém engatilhar uma arma e perguntar:
-Alô? Tem alguém aí?
O silêncio da noite respondeu. Nada. Então uma voz diferente, feminina disse:
-Vamos embora, não tem nada aqui. A gente tem que voltar e terminar de evacuar nossas ruas. E se ouvirmos mais alguma coisa fora do nosso local de incumbência, ignore!
Ouvimos o carro partir. Meu coração batia forte no peito e eu suava muito. Nós ficamos grudados lá ainda uns minutos depois do carro ter ido embora. Aí a gente levantou, deu uma olhada em volta e voltamos à nossa cansativa jornada. Ninguém comentou nada porque ninguém queria fazer mais barulho.A gente foi andando pela rua, cuidadosamente, nos escondendo sempre que dava. Pouco tempo depois, chegamos ao meu prédio.
***
A gente parou na entrada do prédio. Tudo estava muito quieto. A gente ia ter que pular a grade. Jogamos os kits de primeiros socorros por cima da grade e ficamos em dúvida do que fazer com as latinhas, que por fim, rolamos por baixo da grade. Como eu conseguia pular sozinho, eu fui fazendo pezinho pra todo mundo e fiquei por último. Pelo menos esse era o plano. A Vany se recusou a receber pezinho, porque ela tava de saia. Ela pediu pra todo mundo virar pro outro lado e o Pedro disse, com um sorriso:
-Não.
Ela se estressou e eu e o Ivan começamos a rir, enquanto o Pedro fazia uma voz fininha e dizia:
-Não quero.
A Vany olhou nos olhos dele, pela grade, e disse:
-Vira logo, eu vou ter que subir sozinha e não quero ninguém olhando!
O Pedro cruzou os braços numa pose infantil e disse, com a mesma voz zombeteira:
-Não.
A Vany falou:
-Ah, Pedrusca....
Pedro sorriu. Iavn ria e tossia, como ele sempre faz quando ri. Eu só ria. A Vany virou pra mim e fez beicinho, se inclinando e colocando a mão no meu ombro:
-Guinho...-Era assim que ela me chamava- Faz o Pedro parar...
Eu ri, afastando a mão dela e dizendo:
-Eu não, resolvam vocês.
O Pedro se mostrava irredutível e todo mundo, no fundo no fundo, estava gostando, até a Vany. Mas ele simplesmente não parava. Eu falei:
-OK, Pedro agora chega, vira pra trás, vira. Na moral.
Pedro reclamou:
-Não, cara.
Ivan falou:
-Pedro, vira pra trás.
Pedro disse:
-Cala a boca, Ivan.
E aí virou pro lado, reclamando. A Vany subiu e eu olhei pro outro lado, tentando não me sentir desconfortável naquela situação. Ela não conseguiu subir. Ela reclamou e veio de novo pra cima de mim:
-Guinho...
Eu respondi:
-Eu prometo não olhar.
Ela ficou com um sorriso encabulado, enquanto o rosto dela ficava vermelho rapidamente. Eu me abaixei e entrelacei os dedos, olhando para o chão. Ela pôs o pé em cima da minha mão e eu perguntei:
-Pronta?
Ela assentiu, dizendo:
-A-hã...
Eu levantei a mão e continuei olhando pro chão. Eu fiquei olhando pro chão e ela subiu, passando por cima da grade e caindo do outro lado. Então ela disse, com uma voz animada:
-Já podem olhar!
Eu tirei os olhos do chão e comecei a escalar. A eu cheguei até o topo, passei a perna para o outro lado e disse:
-Vamos.
Aí a Vany pulou em cima de mim, passou os braçoes por trás do meu pescoço e me deu um beijo na bochecha.
-Obrigado- Disse ela.
Eu disse:
-Nada...
E começamos a subir os degraus até a portaria. Foi aí que eu me toquei. "A guarita".Eu voltei rapidamente e procurei na guarita por algum item últil. E eu achei o controle remoto do portão. Eu fiquei parado boquiaberto com aquilo na mão, enquanto a gente voltou a rir. Depois a gente foi andando pra dentro do prédio, os quatro, lado a lado. O fato é que todas aquelas risadas tinham levantado o nosso astral. Fazia muito tempo que a gente só chorava e agora a gente tinha percebido que, apesar de estarmos naquela situação, a vida ainda era a vida. Muita coisa tinha mudado, mas muita coisa continuava igual. E é assim que são as coisas.