-Tudo bem?
Eu assenti com a cabeça. Aí ela perguntou:
-Posso?
Eu assenti de novo. Com a queda no asfalto eu tinha feito um cortezinho acima da sobrancelha e um corte grande na testa. Precisei levar pontos, o que foi o momento mais agonizante que eu já passei em toda minha vida. Foi Pedro quem fez. Ele era o único que tinha sangue frio o suficiente. A gente ferveu água e esterelizou a agulha e o fio. Eu sentia a agulha entrando na minha pele e eu não conseguia nem mesmo ver o que estava acontecendo. O tempo todo eu fiquei lembrando do zumbi no apartamento, com uma agulha de tricô enfiada no pescoço. Depois de ver o machucado maior, a gente foi dar uma olhada no menor. A Vany estava inclinada para frente, eu estava sentado na cadeira olhando para o alto e ela começou a passar o algodão em meu rosto. Ardeu pra caramba. A ideia de ir para uma farmácia fora do Ivan. E fora genial. Tinha uma farmácia perto de onde a gente tinha parado. A Vany perguntou "E agora?" e o Ivan, após alguns segundos, apontou para a farmácia vazia. Mas ela estava trancada. Como não havia ninguém a vista, eu joguei um tijolo na porta de vidro e um alarme soou alto. Ivan logo encontrou e desligou a energia, o que também desligou o alarme. E cada um foi cuidar dos seus machucados, menos eu, que precisava de ajuda.
Foi quando a Vany terminou de limpar meu machucado que eu percebi como estava com fome. Não havíamos comido nada desde que acordamos. Então todos procuramos bebidas, comidas e outras coisas. Sentamos atrás do balcão da farmácia e começamos a comer. Pedro, como sempre, tomava uma garafinha de água mineral e comia um pacote de Doritos. Eu bebi uma lata de Ice Tea da pêssego e comi algumas barras de cereal, que dividi com a Vany. Ivan escolheu uma Coca e chocolates. Então a gente começou a conversar.
-Vocês percebem que a gente tá roubando tudo isso, né?- Ivan comentou.
A Vany deu uma mordida na minha barra de cereal, pensativa: - E se amanhã tudo estiver resolvido?
Pedro riu. Ele disse: -Ninguém vai conseguir provar que fomos nós, é só a gente queimar as fitas de segurança. Mas eu duvido que tudo isso se resolva de uma hora pra outra.
Vany replicou:
-Ué, mas começou de uma hora pra outra.
Ela tinha razão. Fazia até sentido. Mas no fundo, a gente sabia que não ia ser tão fácil resolver as coisas.
-E depois disso? O que fazemos?- Disse Ivan, entre um gole e outro de sua Coca.
-Cara, depois disso... A gente vai ter que começar a tomar mais cuidado. -Eu respondi- Esse vírus acabou de estourar, mas logo logo vão ter milhares de zumbis andando por aí. Essa cidade é enorme...
Todo mundo parou de comer quando eu mencionei isso. Será que eu tinha sido rápido demais? Será que eles já não esperavam isso? Mas daí eu lembrei. Nós estávamos contaminados. Como ia ser? Quanto tempo ia demorar pra gente morrer? Ninguém além de mim estava se sentindo mal. Eu estava com fortes dores de cabeça e sensação de tontura, mas acho que isso acontece depois de uma pancada porte assim. Só podíamos esperar. O silêncio fúnebre foi quebrado por Pedro, que comentou:
-A gente vai precisar de muitas coisas pra sobreviver por aqui. Afinal, a gente não vai conseguir ajuda dos militares enquanto estivermos infectados, vírus ativos ou não. A gente vai precisar de um lugar pra passar a noite. De trocas de roupa. De mantimentos. De armas pra nos defender.
Todos nós ficamos quietos. Eu pensei um pouco e disse:
-Nós vamos voltar lá em casa. E vamos conseguir tudo isso.
Todos eles ficaram estarrecidos, eu continuei:
-É óbvio, quer dizer... Eles vão procurar lá? Eles já estiveram lá, né? A gente só tem que pensar de uma maneira de passar por eles despercebidos. Lá tem facas, cadeiras, raquetes de tênis, panelas, um cajado, estacas de madeira. Pena que a gente vendeu a lança.
Ivan se surpreendeu:
-Uma lança?
Eu ri e continuei:
-É, meu pai tinha uma lança indígena real, feita de madeira maciça, mas a gente vendeu. Não servia pra nada. Bom, lá estão suas malas e temos muitas mais. Poderemos encher algumas de mantimentos, outras de roupa. Outras de outras utilidades, como lanternas, cordas, kit de primeiros socorros.
Todos eles foram ficando empolgados. A gente começou a decidir os detalhes do plano para invadir minha própria casa.
***
Algum tempo depois, a gente resolveu ligar pros nossos pais. Achamos que seria o mais sensato a se fazer. Fora que, alguns estavam extremamente preocupados ou com saudades. Enquanto cada um ligava pros seus pais e explicava para eles a situação, a gente via a fortaleza que a pessoas era desmoronar. Todos choramos, ao perceber que provavelmente iríamos passar um longo tempo sem ver nossos pais. A gente sabia que o bairro inteiro tinha sido isolado. Não tinha como a gente ver eles agora. Após isso, sentamos todos no chão, na seção de cosméticos, de onde tínhamos uma boa vista da porta ao mesmo tempo que ficávamos relativamente escondidos; enquanto conversávamos. De repente, eu resolvi perguntar.
-Qual foi a última coisa que vocês disseram para seus pais? Tipo... Quando vocês tavam com eles.
Pedro tomou a dianteira e começou a falar:
-Eu disse "tchau pai, até mais".
Só depois que as palavras saíram da boca dele que ele percebeu o significado delas. E aquilo afetou ele. Pedro era bastante insensível, ou não gostava de demonstrar os sentimentos, não sei. Mas aquilo afetou a todos nós. E ele se levantou, deu uma porrada na estante de cosméticos que fez vários shampoos caírem, e foi embora. Ficou um silêncio grande enquanto a gente ouvia ele jogando objetos pela loja, num acesso de raiva, frustração e stress. E ninguém culpava ele. Todos nós, no fundo no fundo, queríamos estar aconchegados nos abraços de nossospais e mães, queríamos estar fora daquela situação. Apesar de, pelo lado bom, ser muito massa e algo que a gente sempre sonhou (Matar zumbis!), por outro lado, era real. E a gente não podia parar quando quisesse e nem arriscar a vida tanto assim. A gente não podia pegar um taco de beisebol e sair por aí esmagando crânios como a gente sempre quis. Não, isso era a vida, a gente estava sentindo emoções que nunca imaginamos sentir tão intensamente. E era normal que a gente se surpreendesse uns com os outros ou consigo mesmos. Por isso ninguém reclamou enquanto Pedro destruía a loja. Cada um, dentro de si, se via fazendo a mesma coisa. O Pedro finalmente percebeu que aquilo não era um jogo, que ele podia acabar morrendo ali. Ele finalmente sentiu a mesma raiva que eu dos zumbis. Malditos zumbis. Dava vontade de destroçar cada um deles. Ele se sentou novamente na nossa frente e, com os olhos vermelhos e as mãos tremendo ele disse, com uma voz mais alta do que a necessária:
-Escuta... Eu vou lá fora, por que se eu ficar aqui vocês vão se machucar.
Eu me preocupei:
-Mas e se acontecer alguma coisa?
Ele se levantou e disse, andando para a saída:
-Ai de quem aparecer no meu caminho, zumbi ou humano! Eu volto mais tarde.
***
Acho que passou um tempo até que Pedro voltasse. A gente ficou matando o tempo e foi engraçado como ninguém passou por ali o dia inteiro. Conversamos, tentando nos manter fora do assunto mais assustador, andamos pela loja, jogamos joguinhos como detetive, enquanto ficávamos sempre de olho do lado de fora. Tentamos nos manter calmos e houve uma seção de terapia quando a Vany começou a falar sobre a avó dela.
-Eu vi que ela tinha sido mordida, por isso saí o mais rápido possível de perto do corpo. Eu sei que pode ser maluquice, mas todo mundo já ouviu falar de zumbis...- Ela fez uma pausa enquanto mexia nos cadarços de seu Allstar azulado- E eu liguei uma coisa a outra. Sabia que, se ela voltasse, eu não conseguiria mais fazer nada. Nada. Nem levantar, nunca mais.
Ela começou a chorar e eu abracei ela, enquanto ela despejava as lágrimas sobre meu ombro. Ivan ouvia a tudo atentamente com uma cara de inconformado. Ele achava tudo isso muito injusto. A seção de terapia demorou mais meia hora depois disso, mais ou menos. E aí, quando eram lá pelas 18:30 (Horário de verão), o Pedro voltou. Parecia muito mais calmo, mas ainda assim inconformado. Ele se recusou a falar sobre o que aconteceu na caminhada, menos uma coisa.
-Pelo que eu vi- Ele contou- Os militares estão apavorados. Eu aproveitei pra dar uma olhada neles e eles estavam completamente paranóicos. Eles já evacuaram o prédio do jeito deles, mas ninguém subiu e se recusaram a entrar em qualquer apartamento onde pessoas infectadas estiveram. Então seu apartamento vai continuar intacto.
Nós perguntamos pra ele como ele sabia disso tudo e ele disse que tinha ouvido dos militares. A gente perguntou como e ele não quis dizer, mas disse que eles iriam começar as patrulhas hoje à noite, para evacuar quase o bairro todo. E a gente deveria estar no prédio quando as patrulhas começassem. A Vany disse:
-Não se preocupe. A gente vai invadir hoje à noite.