domingo, 14 de março de 2010

Capítulo 22- Sozinho

Cansado, ofegante e completamente sozinho, eu entrei pela porta da farmácia. Os pedaços de vidro caídos no chão estalaram sob meus pés. Eu sentia os machucados no meu corpo, sangue pingando misturado ás gotas de suor que escorriam pela minha carcaça. Sim, carcaça. Aquilo não era mais um corpo. Eu me sentia irritado, cansado, velho, tenso e nauseado. Mas, acima de tudo, eu me sentia triste. Tinha me sentido dessa maneira desde que fugi dos zumbis, ao ser mordido. Desde que corri, em pânico, abandonando meus melhores amigos à própria sorte no meio de vários zumbis. Fazia uns 20 minutos. Sem eles, eu e locomovia com mais facilidade, no meu ritmo, correndo, pulando, me escondendo tão facilmente quanto eu quisesse. E saber disso fazia com que eu me sentisse péssimo. Era como pensar que eles me atrasavam. "Pronto" eu pensei "Agora não tem mais ninguém te atrasando, Hugo. Você tá sozinho. Pela primeira vez, desde que essa maldita invasão começou, você está sozinho. Completamente sozinho." Eu derrubei alguns produtos das prateleiras de propósito. Eu tinha resolvido fugir e correr até chegar na farmácia, aonde eu daria uma olhada na mordida. Eu tinha reparado que o zumbi que me mordeu foi aquele que eu tinha quebrado parte da mandíbula. Parte. Ele me mordeu com a parte que eu não tinha detonado. Não sei se foi o suficiente. Eu lembro também que ele não mordeu com força. Nem tava doendo. Mas eu entrei em pânico. Tinha sido uma brecha, que podia ter resultado na minha morte. Precisava me preparar mais. Sempre melhorar, nunca está bom o suficiente.

***

Eu levantei a bainha da calça, meio escondido atrás do balcão. estava óbvio que a farmácia tinha sido saqueada. Vários remédios faltavam, entre outras coisas. Eu olhei. Não havia nenhum machucado. Nada. Suspirando de alívio, cheguei à conclusão de que provavelmente devia ter ficado a marca dos dentes do zumbi, pressionados, mas que já devia ter desaparecido. Ele não teve força pra entrar na minha carne. E isso me alegrou um pouco, mas agora eu precisava me reagrupar com eles. Não havia chances de sobrevivência ou qualquer outra coisa pra mim sozinho. E nem de achar eles na cidade. Eu precisava voltar para a casa de Ricardo. Eles voltariam para lá ao final do dia e tudo se resolveria. Assim, determinado, eu levantei e saltei o balcão.
***
Após alguns desvios de rota e momentos escondido, cheguei à entrada da casa de Ricardo. E a porta estava escancarada. Eu ouvi passos e vozes lá dentro. O único esconderijo perto da casa era uma árvore, alta, não muito grossa, mas estava muito perto, perto demais. Eu vi uma moto parada em frente à casa e percebi que provavelmente, ela estava sendo carregada com as coisas da casa. De repente, me ocorreu uma ideia. Eu subi na moto e procurei a chave. Nada. Merda. eu virei para voltar para a árvore quando eu percebi o cano de uma arma encostada na minha cabeça.
-Me dá um bom motivo pra não arrancar seu cérebro de dentro dessa tua cabeça com uma bala.
Eu olhei além do cano. Um homem, grande, olhos escuros, pele clara, cabeça raspada, jaqueta de couro, aparentando uns 35 anos, cavanhaque, cabelos pretos, grossas sobrancelhas e um cigarro meio caído num canto da boca. Eu tava irritado. Eu tava cansado. E eu tinha ficado mais irritado ainda com ele, por estar saqueando a casa do Ricardo. Eu falei, com mais coragem do que imaginei que conseguiria:
-Vai se foder! Eu não devo nada a você, eu tô nessa casa e você tava roubando as coisas dela, então me pareceu bem justo roubar uma coisa tua também. Mas eu me fodi. Você não. Vai embora logo, leva as coisas, só me deixa vazar também. Não fiz nada de errado.
Ele olhou fundo nos meus olhos e me deu uma coronhada violenta na testa, eu caí no chão. Ele me ergueu pelo colarinho com as duas mãos e me colocou em frente ao rosto dele:
-Você tem razão. Não fez nada de errado. Mas podia ter feito. Então que isso aqui sirva de lição pra você, garoto durão, pra aprender a nunca mais mexer comigo.
Ele me prendeu no guidão da moto pela gola e acelerou. Eu nunca senti tanta dor na minha vida. Minhas pernas quicavam no chão, meus braços se arrastavam no asfalto quente, deixando pele e sangue no caminho, minhas calças rasgaram e logo minhas pernas e joelhos também começaram a rasgar, aumentando a trilha de sangue e a dor esfolante que eu sentia. Eu ergui um braço com dificuldade, após recuperado do susto, e desprendi minha gola do guidão. Eu rolei pela estrada, sentindo porradas diferentes de cada direção imaginável enquanto o mundo girava ao meu redor. E, o pior de tudo, eu não desmaiei. Eu senti tudo. E continuei sentindo. E continuei sentindo, o sangue vazando de diferentes partes do meu corpo. As várias pancadas. O asfalto queimando minhas costas. O fôlego lentamente retornando, cada inspiração queimando seu caminho pelas minhas entranhas. Eu comecei a chorar. Chorei muito, pedindo ajuda a ninguém em particular. E ninguém veio ajudar. E aí eu levantei e, meio cambaleando, chorando, escorrendo sangue e tremendo de tristeza e ódio, eu comecei a caminhar novamente para a casa de Ricardo.